sábado, 3 de novembro de 2007

O Último Inverno...

Finalmente, este terceiro caderno do Diário begins to spread its wings. Depois de dois meses parado o recomeço é lento, os movimentos são perros, como os de um urso que hibernou longos dias, e finalmente viu o sol voltar depois do frio e da neve. Aos poucos o corpo vai aquecendo, os movimentos vão se tornando mais firmes e mais rápidos, a vida vai retornando aos músculos, os sentidos vão despertando. Não sei quando haverá inverno outra vez, menos ainda quando será o último inverno do qual não mais retornarei.

Enquanto esse inverno definitivo de hibernação eterna não chega, é preciso aproveitar cada momento, e qualquer momento também pode ser interrompido a qualquer segundo. Isso me leva a repensar o que tenho pensado muitas vezes: no livro que sempre desejei escrever. Vários foram projectados, rascunhados, um foi inteiramente digitado mas não estava suficientemente bom...mas nada veio à luz do dia, nada foi entregue a público, muito porque ficou engavetado, muito porque foi simplesmente "exterminado." Há momentos em que me sinto como um viajante que tem sua partida permanentemente adiada, ou como um outro que consegue largar do porto mas, por uma razão qualquer, tem sempre que voltar ao cais.

Mas estava a tentar ver este eterno adiar duma outra perspectiva - porque é sempre preciso ver as mesmas velhas coisas de perspectivas novas, porque são as novas perspectivas que dão nova vida às coisas velhas - e ocorreu-me que o livro que tanto desejo escrever, se calhar, já está a ser escrito: este Diário é o livro. Estou a escrever esse livro todos os dias, talvez sem me dar conta disso. E, como não me dou conta de que o que quero está aqui bem debaixo dos meus olhos, ando a procurar por outros lugares.

Quem me garante que, dentro de alguns anos, este Diário não será descoberto, editado, e publicado? Quantos Diários não foram escritos com as mesmas disposições com que escrevo este e se tornaram, sem que seus autores tivessem a intenção de que assim fosse, obras de literatura em seus diversos ramos? Ainda há meses estava a ler o Diário de Jean-Paul Sartre. Era o "Diário de Uma Guerra Estranha", de cuja forma e conteúdo este não difere muito (apesar de ser este muito mais modesto). O Diário de Sartre tornou-se parte integrante da sua produção literária. De facto, dados fundamentais da sua filosofia, tratados primeiramente em forma de monólogo - a conversa de mim comigo mesmo de que falava o Nietzsche - estão no seu Diário, foi nele que ele os concebeu. Por outro lado, Sartre menciona no dele vários outros Diários famosos, dos quais ele se serviu para comentar vários assuntos: os Diários de Stendhal, Renard, Gongourt, Gide, Girardoux, Chamson.

Depois da minha morte? Depois que chegar o inverno definitivo de hibernação eterna? E por que não? Lembro-me agora de que practicamente toda a obra do meu querido Fernando Pessoa foi publicada depois da sua morte, depois da noite em que ele, numa cama de hospital de Lisboa, escreveu num papelito "I don't know what tomorrow will bring", po-lo na mesinha de cabeceira, pegou no sono e nunca mais acordou.

Practicamente tudo de bom e belo, do mais belo e do melhor que ele escreveu, ficou anónimo, na gaveta, na obscuridade, verdadeiros girassóis na sombra. Durante a sua vida quase nada foi dado a conhecer. e foi assim durante anos. Depois da sua morte descobriram o seu famoso "espólio", com uma obra riquíssima, extraordinária, contendo inclusivè o - na minha opinião - seu livro mais famoso, o "Livro do Desassossego", uma obra de génio, porque foi um génio que a escreveu: um autêntico "Assim Falava Zaratustra" em língua portuguesa.

Quem me garante que a mesma coisa não poderá acontecer comigo? Ninguém me garante, claro; nem eu mesmo garanto. Mas uma coisa eu posso garantir: é que posso tentar fazer com que aconteça.

Estou sempre a conversar com R. sobre isso, sobre esse livro que quero escrever. Ela me incentiva e encoraja, a única pessoa próxima de mim que alguma vez fez isso. Há um rascunho pronto de um, estou a pensar em um segundo, mas ambos não me livram da sensação de viagem adiada. Só este Diário me deixa, me confere a impressão de que alguma coisa está feita, hoje, aqui e agora. É um projecto sempre actual, sempre acabado.

É continuar com ele, com constância e firmeza. Ele é o celeiro que pode alimentar todos os outros planos, o banco de dados, o terreno das mudas, o seu canteiro, e ainda que eu não venha a ter tempo de transplantar estas mudas para um lugar definitivo, elas cá estarão. Alguém as poderá transplantar por mim.

"Não sei o que o amanhã me trará", disse o Fernando Pessoa na noite em que morreu. Digo a mesma coisa agora mas espero, apenas espero, que o meu último amanhã venha depois de muitas noite.

E depois de dizer tudo isto sinto que aos poucos o corpo vai aquecendo, os movimentos vão ficando mais firmes e mais rápidos, a vida vai retornando aos músculos, os sentidos vão despertando. É como disse o João Cabral de Mello Neto:

pois sinto que melhor vejo
que levo lentes na vista
se isto tudo antes mil-ví
as coisas estão mais nítidas.

Ou, ainda:

sinto na sola dos pés
que as pedras estão mais vivas
que as piso como descalço
sinto as arestas e a fibra.

Acho que é isso o que ele diz porque estou a citar os versos de memória.

Sinto tudo, até que chegue o último inverno e a última hibernação.

Frank

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